Translate

segunda-feira, abril 28, 2014

Bela morte - Um conto

Morri!

É... morri! 

Nem mesmo posso dizer como tudo aconteceu. Foi tão rápido e intenso que, quando percebi, estava do outro lado. Não me lembro muito bem como tudo aconteceu porque eu estava num porre danado. Bebi mesmo. Bebi hoje mais do que o projetado para o mês...

O curioso é que, na medida em que a indesejada dos homens*, de mim se aproximava, tentei recorrer à todo o cabedal de conhecimentos teóricos espirituais que adquiri ao longo desta existência, para tentar afastar a dita de perto de mim e nada resolveu. Ela veio assim mesmo. Bateu na minha cara e esfregou seu manto negro e fétido em minhas narinas. Deixa eu contar direitinho prá você.

Olha, a experiência foi interessante. Morrer não é tão ruim, mas, preciso reconhecer, foi decepcionante. Eu, na minha modesta opinião, achava que ao chegar do outro lado seria recepcionado por uma grande fanfarra de anjos ou arcanjos, todos tocando seus maravilhosos clarins. Do lado direito veria meus amigos, parentes que me antecederam na grande jornada, do lado direito meus não tão amigos assim, porque meio sem querer a gente vai fazendo uns por aqui e outros por ali e, lá na frente a comitiva principal com São Pedro à frente com as chaves na mão direita e logo atrás dele Nosso Senhor, me esperando de braços abertos.

Não quero te enganar não! Não foi nada assim. Esperava mais. Bem, pelo menos não fui atacado por figuras diabólicas, com chifres e línguas bipartidas e pontiagudas.

Como dizia, quando vivo eu pensava que ao fechar as cortinas da minha apresentação do mundo, eu serie recebido do outro lado com fanfarras e bandas pois, ao final das contas, eu havia sido um homem bom. Eram incontáveis as pessoas com as quais tive a oportunidade de partilhar meus dotes caridosos, tinha bons amigos e uma família que me amava.

Bem, é aqui que começa minha saga. Quando a danada da morte me pegou de surpresa, para dizer que não aconteceu nada, posso afirmar que senti certo calafrio percorrendo minhas costelas e vi, com estes olhos de morto, uma névoa cobrindo o ambiente inteiro. Com o passar dos minutos nada mais de misterioso restou. Ficou tudo como "dantes no reino de Abrantes". Entendeu o trocadilho, né?

Olha só, o que eu quero te contar aqui é: como meu encontro com a indesejada dos homens. 

Eu tava lá, sentando na primeiro degrau da escada - a escada que dá acesso da sala para os quartos na área superior - olhando para o meu corpo ali, caído, tão sem vida e começando a ficar roxinho. Eu até que era bonitinho viu. Acho que só precisava mudar aquele corte de cabelo do século passado e tirar os pelos que, de tão grande, já saiam para fora do nariz. Parecia uma escova desfiada, credo! Bem, agora não adiantava mais nada. E onde estavam meus amigos sinceros que nunca me falaram que eu parecia um leão marinho...?

Sem ter muito o que fazer, apesar do meu estranhamento nesta nova situação, comecei a andar pela sala.

A passos lentos, quase pensativos, fui até a estante onde está a televisão e o aparelho de som. Mexi nos livros e em alguns enfeites. Estava me entretendo pois eu não sabia muito o que fazer nesta condição de morto. De repente eu ouço um barulho no pavimento superior da casa.

- Meu Deus!!! O que é isso? Será um fantasma? - Resmunguei.
- Fantasma? Mas eu também era um, então não havia motivo para medo, certo?

De qualquer maneira, sendo eu um fantasma ou não, caminhei lentamente ao pé da escada. Só o pensamento de encontrar alguém aqui deste outro lado causava-me um calafrio profundo. De onde eu estava não conseguia ver a escada inteira.

Não demorou muito e o barulho - toc... toc... toc...... toc.... lento e demorado, quase uma eternidade começou a ser ouvido nos degraus. O ranger da madeira envelhecida pelo tempo fez disparar meu coração - fantasma tem coração? - ora, alguma coisa que pulsava em meu peito fantasmagórico, praticamente saiu pela boca.

Toc... toc... De repente senti uma brisa gelada, uma névoa branca vindo do alto da escada. Fosse quem fosse gostava de efeitos especiais. Primeiro vi seus lindos pés adornados por uma bela sandália de salto alto com finos pontos de brilhantes e uma maravilhosa pedra rubi, brilhante na junção entre os dedos. Aos poucos apreciei o tornozelo e a cauda de seu lindo vestido negro. Toc..., mais um ranger de madeira e já consegui ver a panturrilha da perna direita - uau - "torneadíssima". Parece que foi produzida em academia. Não sei quem era a figura, mas aparentemente gostava de malhar.

Eu já não aguentava mais tanta demora e toc, toc... Dei um passo adiante e... agora sim. Já podia ver seus belos joelhos e o contorno estonteante de suas coxas, ocultas pelo vestido negro que formava um decote em "V" invertido. Agora meu coração disparava de excitação e não mais de medo. Preciso reconhecer, homem - homem mesmo - é um bicho tonto, mesmo do outro lado da vida não pode ver um rabo de saia que fica maluco. Eu, cá comigo, achei que quando passasse para cá esse gostar diminuiria mas não é, que não é assim... entendeu? Então, é assim.

Quando, finalmente, depois de esperar mais de dez horas para terminar o toc, nhec, toc, nhec, pude apreciar a totalidade daquela obra prima. 

A mulher terminou sua descida e tocou, como uma princesa o último degrau, permitindo-me vislumbrar toda aquela esplêndida criação de Deus - é isso mesmo, criação de Deus - afinal Ele é o máximo Criador dos universos.

Olha só, se eu interromper este relato antecipadamente é porque uma coisa muito boa ou muito ruim aconteceu por aqui. 

A mulher era danada de bonita. Mulher de fino trato. Uma beleza estonteante. O vestido negro da cintura para baixo e negro com adornos de pedras brilhantes vermelhas e azuis por toda a parte superior. A beleza de um decote é indescritível quando a composição é completa. A ponta do "V" chegava próximo ao diafragma, deixando um lindo vale entre as bordas dos dois seios. Estes, verdadeiras obras primas de Deus, revelavam a maciez e suavidade da seda e eram um convite sutil à descoberta de seus mistérios. Volumes e tamanhos perfeitos, verdadeira simetria divina, pouco maiores que a concha da mão, eram finalizados por mamilos singelos que pareciam querer sair do vestido.

Sua beleza não parava aí. As curvas dos seios uniam-se a ombros perfeitamente torneados finalizados em um queixo e lábios carnudos e com aquela covinha no lábio superior, era de "cair o queixo" - entendeu?

Quando, finalmente, tive coragem para respirar e olhar a perfeição de seus olhos tive a certeza de que ficar ali era minha meta a partir de agora. Senti que diante daquela mulher até as flores, orquídeas e rosas que estavam espalhadas pela sala começaram a murchar de tanta vergonha. Nariz de princesa, levemente arrebitado para cima e olhos grandes e... lilás.... na terra meu pai eu falaria "vixi", mas aqui no sudeste eu digo "nooooosssssa".

É verdade. O lilás era a cor predominante nos olhos daquela beldade e era danado de bonito.

A lentidão ficou por ai. Quando ela finalmente tocou o último degrau, olhou para mim com seus olhos lilás fulminantes e sedutores, jogou sua cabeleira grandiosa e negra para trás, como só as mulheres que querem "chicotear" seus homens sabem fazer. De tão longo que eram, seus cabelos se enrolaram em meu pescoço, fazendo com que eu ficasse coladinho nela.

Seu moço, eu vou lhe dizer: "pensa numa mulher gelada"... era ela. O que era aquilo minha senhora? - eu pensei. Que coisa estranha, ela me queria demais. Com aquela geleira toda a belezura dela se acabou e meu fogo se apagou num instantinho. 

Ouça só o "converseiro" dela:

- Oooooooi! - Assim mesmo, com a vogal o estendida, parecia que não acabava mais. 
- Finalmente nos encontramos...
- Eeee dona. A gente nem tava se procurando. - Retruquei.
- Como não? - Apesar do frio a voz da danada da mulher era gostosa "dimais" de Se ouvir. - Você vem se esforçando tanto para me encontrar. - completou.
- Eeeuuuu não. Eu sou casado, tenho filhos... gosto de mulher mas sou um homem direito...
- Não parece. Todos os dias você se esforça  tanto para me encontrar que eu resolvi me antecipar. - Ela colou suavemente seus lábios lindos, carnudos, maravilhosos e gelados em meu pescoço.
- Sai prá lá dona. Tira essa boca linda e esse cabelo do meu pescoço, tá me sufocando e me deixa todo arrepiado. - Tentei, com toda a força afastar aquele monumento gélido, parecia um iceberg, credo!!! Após algum esforço consegui me afastar e fui para o meio da sala, quase tropeçando no meu próprio corpo caído ao pé da escada.
- Vem. Eu tenho reservado o lugar principal para você no meu reino. Você não vai perder a oportunidade de aproveitar tudo isso, vai? - Enquanto falava ela fixava meus olhos e fazia sua mão direita percorrer todo o seu corpo, começando do seio direito e indo parar próximo de sua púbis, enquanto isso a mão esquerda ficava suavemente entre os lábios. Sensual demais. 
- Ahhhh... que doideira é essa. A mulher do meus sonhos ali, todinha pronta para mim e sequer posso tocá-la - resmunguei em voz alta - Ow homem, o que é isso? Você é um cara casado, tem filhos, como pode ficar ai se interessando por uma gelada qualquer? - Completei.
 - Poxa. E por pensar nisso, bem que uma gelada ia bem agora. - Pensei tão alto que ela escutou e, suavemente, aproximou-se.
- Essa é uma boa ideia. Tome, deguste esta cerveja que preparei com tanto carinho para você. - A mulher, mais linda do que nunca, reluzente como o sol do meio dia, mas fria como o inverno na Antárdida, colocou em minhas mãos, sei lá vindo de onde, uma garrafa e um copo transbordando de cerveja. "Home", aquela tava gelada e até o cheiro da cevada entrava em minhas narinas. - Vamos, prove...! - Insistiu ela.

Todo aquele movimento me deixou sedento e fui aproximando levemente o copo de minha boca quando, sem querer, percebi um movimento na cauda do vestido da minha deusa. Levantei a sobrancelha direita, abri a boca e retruquei.

- Ei... perai. O que isso atrás de você, aí, isso aí... isso... ai... no seu.... atrás.... no vestido... Meu Deus isso é um... uma... cauda.... um rabo...

Ela não esperou meu mundo de lamúrias e reclamações. Tirou seu rabo da clandestinidade e enrolou-o completamente em meu corpo, prendendo-me. Com a mão direita tomou o copo e com a esquerda abria minha boca apertando meu maxilar por baixo. Em desespero eu tentava gritar, mas tudo isso era em vão pois ela me dominava por completo. Bem, pelo menos ela era linda e meu rosto estava colado em seus seios maravilhosos.

Bastou eu pensar para que ela se transformasse definitivamente, virando em monstro horroroso tendo com dentes afiadíssimos, olhos gigantescos que saiam do globo ocular e um cheiro fétido que já me deixava nauseabundo.

- Você vai morrer... e vai comigo para o meu reino.... - Ela gritou e deu uma daquelas risadas tétricas para amedrontar-me mais ainda. Por que elas sempre fazem isso?

- Por isso que as flores secaram...Morrer??? Mas eu já estou morto.... tá louca....?

- Imprestável. Imprestável... Não sei onde minha filha estava com a cabeça quando casou com você!!! Acorda, acorda...

Não pude falar mais nada. Fui acordado com um balde de água na cara, enquanto minha sogra gritava feito uma doida, me chamando de bêbado vagabundo e de todos os impropérios que se possa imaginar.

Texto de: Paulo Araújo de Lima


*a indesejada dos homens - termo popularizado por Ariano Suassuna




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seja gigante, comente:..